O ESTADO DE SÃO PAULO
02 de março de 2013 | 2h 08
Miguel Reale Júnior*Manifesto assinado por milhões de pessoas indignadas exige o afastamento de Renan Calheiros da presidência do Senado até o término do processo em curso no Supremo Tribunal Federal (STF). Em contundente artigo neste jornal, Roberto DaMatta, desolado em face da eleição de Renan, pensa em pegar o chapéu, deixar-se tomar pela depressão e desistir de sonhar.
O reclamo contra essa eleição suscita questão prévia relevante: a presunção da inocência, inscrita na Constituição como direito fundamental. Diz o inciso LVII do artigo 5.º: "Ninguém será considerado culpado até o transito em julgado de sentença penal condenatória". Assim, se pendente algum recurso, deve-se presumir não ser o condenado culpado, pois pode ainda ser absolvido.
Segundo Magalhães Gomes Filho, a presunção de inocência leva a rejeitar a avaliação apriorística da culpabilidade, cujo reconhecimento exige a existência de processo justo, com igualdade de armas entre acusação e defesa e decisão definitiva. No entanto, a Lei da Ficha Limpa determinou a perda da elegibilidade em vista de condenação por crimes contra a administração, falsidade, lavagem de dinheiro ou por infração à probidade administrativa, mesmo sem trânsito em julgado, desde que haja decisão de tribunal. O STF, por provocação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), considerou a lei constitucional, entendendo não se violar a presunção de inocência, em vista do disposto no artigo 14, § 9.º, da Constituição, segundo o qual a lei estabelecerá casos de inelegibilidade a fim de proteger a probidade administrativa e a moralidade para exercício de mandato, considerada a vida pregressa do candidato.
Assim, entendeu o STF que o exercício do ius honorum (direito de concorrer a cargos eletivos) pode ser limitado em face de decisão condenatória de tribunal, mesmo não transitada em julgado, pois diz respeito a fatos de elevadíssima carga de reprovabilidade social que não se compadecem com a pretensão de representar o povo, sendo razoável restringir o direito de ser eleito. Ponderou-se que as exigências postas ao homem público são maiores do que as apresentadas ao "homem comum".
Renan Calheiros, presidente do Senado, foi denunciado perante o STF por crimes de peculato, falsidade ideológica e uso de documento falso, tendo em vista o desvio de verba parlamentar e a produção de documentos inverídicos sobre o rendimento de sua fazenda, justificadores de recursos para pagamento de pensão a Mônica Veloso. A denúncia não foi ainda recebida.
Henrique Eduardo Alves, presidente da Câmara dos Deputados, foi condenado em primeira instância no Rio Grande do Norte por ter feito, como secretário de Estado, promoção pessoal com verbas públicas. Aguarda-se julgamento no tribunal. É acusado também na 16.ª Vara da Justiça Federal, em Brasília, de possuir dinheiro no estrangeiro. Surgiu recentemente a revelação de ter havido desvio de verba parlamentar, fato passível de apreciação pelo STF.
Ambos os presidentes, não condenados por órgão colegiado, restam inatingidos pela Lei da Ficha Limpa. A questão, portanto, de assumirem a chefia do Legislativo nacional e eventualmente a Presidência da República não encontra óbice no campo jurídico, e sim no plano moral. Cumpre ao chefe de um Poder da República ter autoridade moral para impor a probidade administrativa, a firme limitação do abuso do poder, a atuação contínua com vista apenas ao interesse público por todos os servidores, sendo tarefa essencial do Legislativo fiscalizar em favor do mais rigoroso respeito à moralidade na administração pública.
Mesmo sem condenação em tribunal por crimes de peculato e falsidade ou por improbidade administrativa, como podem os presidentes do Senado e da Câmara ter autoridade, força moral incontrastável, respeitabilidade na vida pregressa para exigir correção dos parlamentares, dos funcionários das Casas que presidem e dos servidores de toda a administração federal? Surgem outras evidentes hipóteses de conflito de interesses: que liberdade o presidente do Senado e o da Câmara têm para confrontar o STF, que os julgará, em disputa sobre âmbito de competência entre os Poderes Legislativo e Judiciário? Possíveis são, também, divergências acerca da perda de mandato de parlamentares, bem como da atuação das CPIs ou da admissibilidade de medidas provisórias.
É estranho Renan Calheiros conduzir o Senado na votação do projeto de Código Penal (CP) que descriminaliza as figuras menos graves do peculato por erro de outrem e do peculato culposo (artigo 312, § 2.º, e 313 do CP), para as quais sua defesa pode pedir a desclassificação do peculato (artigo 312, caput), pelo qual é processado. Se houver desclassificação, aprovado o projeto de código, ficará impune. Pode Renan presidir a apreciação do projeto de Código Penal em que se elimina a pena de multa para o crime de falsidade ideológica, que lhe é imputado?
O aspecto moral, sem dúvida, prepondera: como educar um jovem, punindo o uso do dinheiro destinado ao material escolar em aposta de joguinho eletrônico, se quem é acusado de desviar verba parlamentar é eleito para presidir as Casas dos representantes do povo?
Não se imagina que Renan e Alves, em ato de grandeza, renunciem a seus postos, até o término dos processos, para só exercerem a presidência de suas Casas sem que lhes paire sobre a cabeça nenhuma suspeita. Assim, como esforço pedagógico resta apenas aos setores conscientes da sociedade manifestar seu inconformismo e às entidades garantes da democracia, como a OAB, líder da campanha da Ficha Limpa, protestar com alarde, mesmo que o presidente da Ordem seja réu em ação de improbidade e investigado por eventual irregularidade junto ao tribunal do Piauí (revista Exame de 12/6/2008).
Só a indignação evita a depressão, impede que se pegue o chapéu e se deixe de sonhar.
* Miguel Reale Júnior é advogado, professor titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e foi Ministro da Justiça