ALBERTO BOMBIG E MARCOS CORONATO, COM RAFAEL CISCATIBRASIL, 2013
O black bloc, ou bloco negro, que entra nas passeatas para promover violência e vandalismo
ITÁLIA, 1922
Os “camisas negras”, paramilitares fascistas, apoiam a ascensão ao poder do ditador Benito Mussolini
(Fotos: Lost Art e Afp)
"Quem não é fascista sai do chão!” O grito de guerra costuma prenunciar a entrada em ação, nas ruas de São Paulo, Rio de Janeiro e outras cidades brasileiras, de um grupo autoritário e violento, cujas táticas incluem o anonimato e a destruição de patrimônio privado e público. Há data certa para que eles tentem aterrorizar as cidades brasileiras: 7 de setembro, sábado, o Dia da Independência. Nesse dia, o tal grupo, felizmente minoritário, tentará mais uma vez impor sua vontade ao brasileiro – ao cidadão disposto a sair às ruas para protestar sem
violência, e também ao cidadão com vontade de aproveitar em paz o fim de semana e a festa cívica. Nas mentes intolerantes do grupo, o sucesso é recriar em escala nacional as cenas tristes vistas recentemente no
Rio de Janeiro e em São Paulo em manifestações que descambaram para a violência.
Na quinta-feira (8), o grupo invadiu as Câmaras Municipais do Rio e de Campinas, interior de São Paulo, e a Assembleia Legislativa do Rio. No dia 17 de julho, no Rio, um protesto organizado na rua onde mora o governador Sérgio Cabral, no Leblon, começou de forma pacífica. Manifestantes desencadearam, então, um confronto com a polícia. Barricadas de lixo incendiado tomaram as ruas, agências bancárias, bancas de jornal e lojas foram destruídas. Houve feridos dos dois lados, incluindo quatro policiais. Em São Paulo, o roteiro foi similar. A passeata era de protesto contra o governador Geraldo Alckmin e em apoio aos manifestantes fluminenses. A marcha começou pacífica, até que um grupo atacou agências bancárias e lojas de carro. No embate com a polícia, ao menos um manifestante saiu ferido. Nos dois casos, poucas dezenas de indivíduos conseguiram sequestrar o rumo da manifestação.
Não se trata apenas de formas diferentes de protestar. O grupo, sempre com a mesma tática, ignora as causas e as vontades da maioria que deseja se manifestar pacificamente – e, desde junho, brada nas ruas por seus direitos, conquistando atenção dos governantes e dos partidos, alvos das críticas. Ao partir para a depredação e a provocação da Polícia Militar, o grupo minoritário não apenas destrói patrimônio público e alheio. Ele também acaba com a manifestação e com a disposição dos cidadãos e das famílias de ir às manifestações seguintes. Pior: esse grupo tem um plano.
A pequena minoria que enfraqueceu a manifestação no Rio e que tentará estragar o 7 de Setembro é formada por uma vertente bem específica do movimento anarquista – os manifestantes violentos, com uma tática chamada black bloc. Curiosa e infelizmente, os seguidores do método parecem não perceber quanto sua forma de agir os aproxima daqueles que eles consideram seus piores inimigos – os fascistas. As duas linhas de pensamento se propõem a defender o cidadão comum, o trabalhador, o assalariado. Ambas supõem saber o que é melhor para esse cidadão, mais do que ele mesmo. Ambas colocam em risco a segurança alheia a fim de atingir seus objetivos. Ambas negam, aos que delas discordam, direitos básicos – à segurança, à propriedade, à manifestação pacífica. Ambas incentivam o indivíduo, escondido pelo grupo, a agir com uma brutalidade que ele não mostraria se estivesse sozinho. Ambas admitem reduzir outros indivíduos a símbolos do mal – podem ser o estrangeiro e o diferente, no caso do fascista, ou o empresário e o policial, no caso do anarquista violento. Não sem motivo, o ditador fascista Benito Mussolini, que levou a Itália a entrar na Segunda Guerra Mundial ao lado dos nazistas, dizia-se simpatizante de ideias anarquistas.
Como outras tribos autoritárias que veem beleza no uso da força contra a democracia, tanto o fascista como o anarquista violento pecam pela ignorância e pela soberba. São incapazes de observar com humildade a história e outras sociedades, a fim de aprender o que deu certo e o que deu errado. “Ao observar os black blocs, vejo um grupo uniformizado, com um método de violência sistemática, que considera a intolerância um método legítimo de manifestação – algo bem distante do conceito original de anarquia”, diz o cientista político Humberto Dantas, professor da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) e conselheiro do Movimento Voto Consciente. “Alguns grupos ainda têm uma percepção romântica da violência, como se fosse possível você recorrer a ela uma última vez, só porque acha necessário. O comunismo e o nazismo defendiam isso”, afirma o cientista político Fábio Wanderley Reis, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
A tática black bloc de protestos de rua foi criada na Alemanha, em 1980. Naquele momento, os manifestantes se levantavam contra a desocupação forçada de certas áreas e prédios em Berlim. Entre os ocupantes dessas áreas havia anarquistas pacíficos, defensores de comunidades alternativas, ambientalistas e ativistas contra a energia nuclear. Numa sexta-feira, uma passeata com 15 mil pessoas dirigiu-se a uma área comercial da cidade. Um grupo se propôs a atuar como “tropa de choque” da passeata e adotou roupas pretas, rosto coberto, capacetes e máscaras contra gás. Esse bloco de negro teve papel fundamental em tornar a passeata violenta, depredar o comércio local e iniciar uma batalha contra a polícia. O grupo recebeu o apelido de Black bloc, e o padrão foi imitado e adaptado em muitas manifestações mundo afora. Em Gênova, Paris, Toronto, Londres, Istambul, Santiago – e, mais recentemente, Rio e São Paulo. Além de recorrer à violência e ao terror contra cidadãos que deixam de trabalhar ou transitar por medo dos protestos, os Black blocs distorcem o uso do anonimato. Cobrir o rosto é compreensível em manifestantes que se opõem a regimes opressores, que podem perseguir o cidadão por suas convicções políticas. Mesmo nesses casos, o ato de impacto contra a opressão pode ser mostrar o rosto. Na Passeata dos Cem Mil, no Rio, em 1968, não se teve notícia de algum manifestante de rosto coberto – num momento em que o Brasil vivia o auge da ditadura militar. Não há sentido em cobrir o rosto no Brasil de hoje, a não ser para cometer crimes. O artigo quinto da Constituição garante o direito à livre manifestação de pensamento, mas não sob o manto do anonimato.
Cobrir o rosto é marca registrada do Black bloc. Alguns deles consideram razoável “apenas” destruir bens. Vandalizam o que é dos outros, como agências bancárias, pontos comerciais e automóveis, e também o que é de todos, como pontos de ônibus e sinais de trânsito. Outros defendem a busca do confronto violento com a polícia. Essa é a linha de conduta empregada em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Black blocs se recusaram por duas vezes a conversar com jornalistas de ÉPOCA na rua, durante manifestações em São Paulo. Pela internet, é possível encontrar muitos simpatizantes da tática – há 37 mil seguidores de uma página nacional, quase 20 mil da página do Rio e 9 mil da página de São Paulo. Essa popularidade dificulta saber quem realmente entra em ação e pode falar por experiência própria e quem apenas incentiva virtualmente e se passa por manifestante, por farra ou ignorância. Nos protestos, percebe-se um padrão. Ao ouvir o grito de guerra contra os “fascistas”, o grupo sabe que chegou a hora de hostilizar os policiais. A maioria se restringe a pular, gritar e ofender. Entra em ação uma equipe menor, que cobre o rosto com capuzes e camisetas. Lançam contra os policiais pedras, paus, placas e pedaços de mobiliário urbano, patrimônio público depredado. Se os policiais recuam, o grupo inicia a destruição do que estiver na frente.
ENGAJADO?
Manifestante ataca a polícia em São Paulo, no sábado (3). A PM suspeita que alguns participantes são contratados para promover baderna (Foto: Nacho Doce/Reuters)
ÉPOCA conversou com integrantes da cúpula da PM sobre investigações a respeito. A Polícia Militar paulista acredita que 50 a 80 pessoas participam das ações em São Paulo. “Eles sempre começam com a provocação, em busca de um revide dos policiais que justifique a depredação. Como a PM não entra mais nessa, eles mesmos iniciam o quebraquebra”, diz um coronel. Segundo ele, os policiais já tentaram dialogar com o grupo, mas eles se recusaram a conversar. A violência é vista com tolerância por outras entidades que ganharam visibilidade durante os protestos. Bruno Torturra, participante do Mídia Ninja – um grupo que se propõe a reportar protestos e movimentos sociais pelo lado dos manifestantes –, se recusou a condenar o vandalismo, em entrevista na semana passada ao programa Roda viva, da TV Cultura de São Paulo. “Eles são jovens que sofrem violência há muito tempo. A maioria deles não confia no Estado”, disse Torturra. “Eles falam que vândalo é o Estado. Consigo entender de onde esse pensamento vem.” Um raciocínio tortuoso e similar é feito por integrantes do Fora do Eixo, o movimento social que se anuncia como incentivador da arte e deu origem ao Mídia Ninja. “Quando o Black bloc vai para a rua quebrar agências bancárias, está dando uma resposta à violência que sofre diariamente por parte do Estado”, diz Pablo Capilé, um representante do Fora do Eixo. “O guri que está na periferia, vendo a polícia bater e um banco lucrando bilhões – o que é vandalismo para ele? Vandalismo é o pai dele apanhando e o banco lucrando.”
Os problemas com os Black blocs talvez ultrapassem a ideologia distorcida. A maior parte deles pode estar sendo enganada e induzida a seguir baderneiros que se vendem por uma pequena quantia. De acordo com a investigação da PM paulista, há evidências de que manifestantes da tática black bloc recebam remuneração e apoio que vai além da simples orientação tática para os protestos. Desde a madrugada do sábado (3), cerca de 20 deles estão acampados em frente ao Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista. Todos os dias, no final da tarde, um veículo abastece o acampamento com cerveja, carne, biscoitos e salgadinhos. A PM afirma ter testemunhado o pagamento de uma diária de R$ 70 aos integrantes do grupo. Na madrugada daquele dia, eles picharam os muros do palácio. Os policiais limparam tudo e avisaram que novas pichações não seriam toleradas. Um manifestante desafiou a ordem e foi preso. Ao verificar os documentos dele, os policiais descobriram que o rapaz era de Rondônia. Suspeitam que ele tenha vindo apenas para a ocupação, como outros, provenientes de Minas Gerais e do Paraná. A suspeita é que eles sejam manifestantes profissionais. As apurações não identificaram, até o momento, quem financia o movimento. A PM afirma haver sinais de que esses manifestantes recebam apoio de grupos de esquerda ou ligados ao transporte clandestino.
O Black bloc representa apenas a versão mais recente e violenta dos movimentos anarquistas, que têm rejeitado toda forma de poder nos últimos 170 anos. Surgiram vertentes como anarcocomunismo, anarcocoletivismo, anarcossindicalismo e anarcofeminismo. Há também o anarquismo pacifista, o verde e o individualista. A história fornece exemplos abundantes de anarquistas que recorreram à violência, sim, mas para lutar contra governos totalitários, como na Guerra Civil Espanhola, em 1936. Os primeiros anarquistas não adotaram esse nome – o rótulo foi colado a eles, como um xingamento. Receberam a pecha de anarquistas os primeiros parlamentaristas que ousavam questionar a monarquia absolutista na Inglaterra do século XVII. Eles foram à guerra, a Inglaterra se tornou parlamentarista e deu um grande passo rumo ao aprimoramento da democracia.
O primeiro homem a colar a si próprio a etiqueta de anarquista foi o filósofo francês Pierre-Joseph Proudhon. Em 1840, comparava a propriedade privada a roubo. Entre seus muitos arroubos e erros, o próprio Proudhon produziu um dos mais belos elogios que se pode fazer à diversidade de pensamento e à capacidade do indivíduo de decidir por conta própria. Ele afirmou que, abrigados no anonimato e na multidão, os homens dariam apenas respostas “estúpidas, incoerentes e violentas”. Na multidão, eles não hesitariam em apoiar a ditadura da maioria sobre a minoria.
No fundo, aquilo que os atuais anarquistas brasileiros imaginam ser “democracia” é essa ditadura. A democracia de verdade não aceita violência nem anonimato. É verdade que se trata de um sistema político lento, cheio de falhas – e que, nos últimos anos, tem gerado no brasileiro frustração e expectativas difíceis de realizar. Mas é o melhor sistema que a humanidade já inventou para regular seus interesses e conflitos.