A mobilização social é um vigoroso instrumento de defesa de direitos e poderoso para pressionar os Poderes no exercício de seus deveres, obrigações, finalidade pública, observância da supremacia do interesse público, zelo dos recursos públicos e gestão voltada à qualidade de vida do povo. Não existe um futuro promissor para uma nação de cidadãos servis e acomodados que entrega o poder aos legisladores permissivos, a uma justiça leniente e aos governantes negligentes, perdulários e ambiciosos que cobram impostos abusivos, desperdiçam dinheiro público, sonegam saúde, submetem a educação, estimulam a violência, tratam o povo com descaso e favorecem a impunidade dos criminosos.

sábado, 30 de novembro de 2013

O MANIFESTANTE

REVISTA ISTO É N° Edição: 2298 | 29.Nov.13


As manifestações de junho já mudaram o País. A famigerada PEC-37, que restringia o poder de investigação do Ministério Público, foi rejeitada pelo Congresso e o Senado aprovou lei que transforma corrupção em crime hediondo. Tudo isso graças à voz das ruas

Por Amauri Segalla





O cantor americano Bob Dylan disse em uma entrevista recente que hoje em dia ninguém mais quer sonhar. “Vivemos uma estúpida era de conformismo”, afirmou. Isso provavelmente é verdade em muitos lugares do mundo, mas não no Brasil. O que teria levado, em junho passado, dois milhões de brasileiros às ruas de todas as capitais e de mais de 500 municípios a não ser uma irreprimível e saudável rebeldia? O que teria movido essas pessoas senão o sonho de mudanças? Os manifestantes – cada um deles – são os “Brasileiros do Ano” para a ISTOÉ não apenas porque tiveram coragem para protestar.
É mais do que isso: o clamor dos manifestantes – o clamor de cada um – está ajudando a construir um país melhor.


TODAS AS IDADES
Aos 82 anos, Marita Ferreira caminhou
durante três horas nos protestos de junho

O excepcional nas manifestações de junho é que elas aglutinaram, provavelmente pela primeira vez na história do Brasil, gente de todas as ideologias (até os que não têm nenhuma), de diferentes classes sociais e de variadas gerações. Aos 82 anos, a aposentada Marita Ferreira se tornou um símbolo involuntário do movimento que varreu o País. No dia 17 de junho, dona Marita, uma senhora de andar altivo e fala firme, pegou o filho e o neto e se dirigiu à avenida Faria Lima, em São Paulo. Levou de casa um cabo de vassoura, cartolina e caneta piloto. Era tudo o que precisava para fazer um cartaz onde se lia “82 anos. Não vim pra brincar, vim manifestar.” Durante as três horas de caminhada pelas ruas de São Paulo, gritou como pôde, ergueu os punhos, dançou em plena avenida – mais ou menos como fizera em 1992, nas manifestações populares contra o governo do presidente Fernando Collor. “Dessa vez protestei contra a bandalheira que vem de todos os lados”, berra dona Marita, numa pausa para a foto que ilustra este texto. Com problemas de audição, ela fala num tom bem mais alto do que o resto da humanidade. Talvez por esse motivo suas palavras de ordem se fizeram ouvir nas passeatas.


GRITOS
Márcia Trinidad e a filha Maitê Peres: depois de muito tempo,
o cidadão comum percebeu que tem poder para mudar o País

Dona Marita não segue ninguém e também não quer ser comandada. A primavera brasileira, desabrochada no final do outono, reúne essa característica peculiar: é apartidária e avessa a toda e qualquer liderança que tente se apropriar do movimento. A psicóloga Márcia Trinidad, 44 anos, tem lá algumas inclinações políticas, mas não deixa que elas contaminem suas aspirações. “Fiquei horrorizada com a violência policial que reprimiu as primeiras passeatas e decidi ir para a rua lutar contra isso”, diz. Com ela, estava a filha Maitê Peres, 21 anos, estudante de publicidade do Mackenzie. Usuária de transporte público, Maitê identificou-se com a causa do Movimento Passe Livre, grupo que teve o mérito de começar a onda de protestos com uma única reivindicação: a redução do preço das passagens de ônibus. “Essa história dos 20 centavos foi só o ponto de partida”, diz Maitê. “Nós meio que percebemos que tínhamos poder para mudar as coisas. Foi a primeira vez que a minha geração sentiu isso de verdade.”

A primavera brasileira é apartidária e avessa a toda e
qualquer liderança que tente se apropriar do movimento

As gigantescas multidões que transbordaram das ruas brasileiras serviram para expressar múltiplos sentimentos. Não houve uma razão maior que tivesse despertado a alma anestesiada do cidadão comum. Incontáveis motivos tiraram os brasileiros do estado de conformismo. Houve protestos contra o baixo nível da educação pública, a carência de médicos, a corrupção generalizada, as condições precárias das estradas, os gastos irresponsáveis com os preparativos para a Copa do Mundo. Os críticos disseram que a falta de uma bandeira única enfraqueceria o movimento, que se tornaria disperso e vago demais para surtir efeitos duradouros. Erraram feio. Pela primeira vez, em muitos anos, os poderosos tiveram que se curvar à voz das ruas. Apenas 13 dias depois da primeira passeata organizada pelo Movimento Passe Livre, prefeitos de dezenas de cidades começaram a revogar o reajuste do preço das tarifas de ônibus. Nesse caso específico, os manifestantes venceram – de goleada.


LUZ E SOMBRAS
Manifestantes ocupam a cobertura do Congresso Nacional no dia 17 de junho

Por mais que algumas vozes dissonantes digam o contrário, as manifestações de junho ajudaram, sim, a mudar o País. A famigerada PEC-37, que restringia o poder de investigação do Ministério Público, foi rejeitada pelo Congresso. Sem as vozes das ruas, o destino da PEC-37 teria sido o mesmo? A gritaria de milhões de brasileiros contra a corrupção surtiu resultados. Esquecido há anos em Brasília, o projeto de lei que transforma corrupção em crime hediondo foi aprovado no Senado depois da avalanche de manifestações. Na quinta-feira 28, o Senado e a Câmara promulgaram a emenda que prevê o fim do voto secreto para a cassação de mandato de senadores e deputados, exatamente como queriam os brasileiros que se rebelaram em junho. O que disse o presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves? Segundo ele, agora o Congresso caminha ao encontro dos anseios do povo brasileiro, “que foi às ruas em junho clamando por melhores serviços públicos e por mais ética.” Não é só. Lembra dos cartazes que pediam mais recursos para as áreas de educação e saúde? Pois bem: definiu-se que 75% dos royalties do petróleo vão para a primeira e 25% para a segunda. Os poderosos entenderam o recado: as ruas não poderão novamente ser desprezadas.


PÁTRIA
Jovens contrários ao aumento do preço do bilhete de ônibus
caminham na avenida Paulista, em São Paulo

Os manifestantes de junho também tiveram a sabedoria de frear os protestos quando eles degeneraram para a insanidade da violência. A partir desse momento ficou fácil identificar quem eram as pessoas de bem – o brasileiro comum que deseja apenas um país melhor – e todos os outros que estavam ali apenas para dar vazão a atos criminosos. Os manifestantes pacíficos por ora silenciaram, mas não significa que serão novamente omissos. Desde junho, muita coisa andou graças ao grito espontâneo de dois milhões de pessoas. Bob Dylan certamente gostaria de saber que algo maravilhoso aconteceu no Brasil.

Fotos: PEDRO DIAS/Ag. Istoé; Pedro Ladeira/Folhapress; Marcelo Alves/Techimage/Folhapress



Um comentário:

Gabriel Correia disse...

Com a proximidade das eleições presidenciais eu já penso que eleição é uma mera formalidade. O que pode fazer a diferença mesmo é o povo fazer valer seus direitos.
Excelente postagem.