ZERO HORA 20 de julho de 2012 | N° 17136. ARTIGOS
TÚLIO MARTINS, Desembargador.
Tempos atrás, um apresentador de televisão referiu-se aos garis como profissionais que exercem o trabalho mais baixo na escala social, o que de imediato provocou protestos e o levou a um pedido público de desculpas. O episódio não teve maiores consequências, mas serviu para mostrar como ainda é arraigado na sociedade brasileira o sentimento de divisão em classes sociais e hierárquicas de todos os elementos simbólicos e materiais relacionados ao trabalho.
As funções socialmente mais humildes e que teoricamente requerem menos condições intelectuais para seu exercício são desvalorizadas, o que talvez tenha se originado na transição do regime escravocrata para o trabalho livre, o qual então era visto apenas como uma melhora do sistema anterior, e não como efetiva ascensão dentro da sociedade. O resultado foi o surgimento de uma classe média baixa avessa às atividades tradicionais, formando um segmento social de bacharéis com anel no dedo, como a provar de que efetivamente não trabalhavam com as mãos. Não por acaso havia um queixume generalizado quanto à necessidade de garantir-se pelo trabalho o próprio sustento, como se o assalariado fosse essencialmente um sucessor da mão de obra escrava.
Vianna Moog, em Bandeirantes e Pioneiros, menciona “milhares de beletristas mofando nas repartições públicas; milhares de candidatos à sinecura e ao invejado título de malandro”, sintetizando com perfeição o padrão médio de pensamento da burguesia ascendente. Aliás, na mesma obra o escritor capta e descreve com mestria as contradições da sociedade brasileira na metade do século 20 (o livro foi escrito na década de 50), como se observa no seguinte trecho:
“Ao revés da dedicação ao dever, a falta de conformidade dos indivíduos com as tarefas, funções e ofícios que lhes são cometidos, o serviço malfeito, a obra mal-acabada, a ineficiência, a deterioração, a impontualidade, a procrastinação, o trabalho considerado como labéu infamante. E, como o ambiente não é propício aos efeitos da inconsciente saturação moral da crença na possibilidade de aperfeiçoamentos, pois a regra é o ceticismo e o derrotismo, ninguém está satisfeito com o que tem, poucos põem o coração no que fazem, todos se sentem mais ou menos roubados no que perderam ou no que não conquistaram por força das transformações sociais que não quiseram ou não puderam acompanhar”.
No início do século 21, o Brasil é uma sociedade que amadurece e se prepara para colher os frutos das próprias virtudes, sem sonhar que a riqueza vá criar-se por um passe de mágica. Quem estuda não é mais o ridículo da turma; o malandro que não cumpre suas obrigações é criticado e excluído do grupo, em vez de ser admirado, e quem tem as mãos calejadas as exibe com orgulho. Até que enfim a preguiça está (mesmo que lentamente) saindo de moda.
A mobilização social é um vigoroso instrumento de defesa de direitos e poderoso para pressionar os Poderes no exercício de seus deveres, obrigações, finalidade pública, observância da supremacia do interesse público, zelo dos recursos públicos e gestão voltada à qualidade de vida do povo. Não existe um futuro promissor para uma nação de cidadãos servis e acomodados que entrega o poder aos legisladores permissivos, a uma justiça leniente e aos governantes negligentes, perdulários e ambiciosos que cobram impostos abusivos, desperdiçam dinheiro público, sonegam saúde, submetem a educação, estimulam a violência, tratam o povo com descaso e favorecem a impunidade dos criminosos.
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