OPINIÃO O Estado de S.Paulo - 17/05/2012
Nas relações entre o Estado e a sociedade, a demanda gera a oferta. A Lei de Acesso à Informação que entrou em vigor ontem é prova desse determinismo. Ela dificilmente teria sido concebida não fossem as demandas da sociedade civil brasileira, entrelaçadas como um movimento praticamente global de cobrança dos governos por accountability - literalmente, o imperativo de prestar contas, ou, para usar o termo consagrado, transparência. Foi o que levou o Planalto a enviar à Câmara dos Deputados, em 2009, o projeto que, amalgamado a outras iniciativas parlamentares na mesma direção, resultou na lei sancionada em novembro último pela presidente Dilma Rousseff para vigorar daí a seis meses.
E será a demanda do público pelos dados oficiais a que tem direito, de agora em diante já não apenas como princípio abstrato, que fará a lei "pegar". Para se sobrepor à renitente cultura de resistência ao arejamento que impregna o Estado profundo - a burocracia cujo poder deriva em boa parte do seu controle quase monopolístico dos registros da intimidade das instituições - não basta que a Lei de Acesso tenha consagrado o conceito de que, no mundo oficial, a publicidade deve ser a regra, e o sigilo a exceção. Se os cidadãos, a título individual ou socialmente articulados, além de entidades profissionais, pesquisadores, ONGs e, em especial, a imprensa, não mostrarem interesse, intenso e constante, em saber o que faz o Poder quando a população está olhando para o outro lado, o noticiado despreparo da máquina para cumprir a nova lei se perpetuará com perversa naturalidade.
O Brasil é o 91.º país a obrigar formalmente o Estado a se expor. O primeiro foi a Suécia, há nada menos de 246 anos. Ali, as autoridades não desfrutam nem sequer de sigilo postal - a sua correspondência, quando tratar de assuntos públicos, é pública. Na América Latina, 12 países se anteciparam ao nosso na criação de leis de acesso. Mas os números podem enganar. Descontados os exemplos nórdicos e de outras nações avançadas, as engrenagens de operação do chamado Governo Aberto tendem a enferrujar por falta de uso. Elas deixam de ser acionadas devido a uma variedade de razões - desde a baixa escolarização das populações, que impede que percebam os nexos entre os seus problemas cotidianos e o desconhecimento dos atos governamentais que neles influem, até as deliberadas restrições que os interessados enfrentam nas tentativas de consulta a documentos públicos. Em tais países, a resposta pavloviana da burocracia aos pedidos tende a ser "não" - ou mañana.
A nascente legislação brasileira é tão avançada quanto se possa desejar, exceto, talvez, por não criar uma agência independente de última instância a que se possa recorrer quando um pedido de informação for negado duas vezes pelo órgão provocado. Essa função será exercida pela Controladoria-Geral da União, que não necessariamente terá no futuro um chefe cioso de sua autonomia como o atual ministro Jorge Hage.
No mais, a lei é de uma amplitude rara. Sem precisar dizer por que, bastando se identificar, qualquer cidadão poderá - pessoalmente, por telefone ou pela internet - requisitar cópia de qualquer documento público do Executivo, Legislativo e Judiciário, na União, Estados e municípios, na administração direta e indireta e entidades privadas subsidiadas pelos governos, salvo quando envolvam a intimidade alheia ou sigilos constitucionais. O prazo para resposta é de até 20 dias, prorrogáveis por outros 10. Rito sumário, pois.
Esses são os parâmetros da transparência passiva - a que resulta de iniciativas da população. Mas outro mérito da Lei de Acesso - o mais abrangente instrumento de controle social do Estado já constituído no Brasil - é a ênfase na transparência ativa. Os entes públicos ficam obrigados a publicar, de forma clara e objetiva, dados básicos sobre receitas, despesas, licitações, contratos, recursos humanos, etc. Um ganho indireto da Lei de Acesso será a modernização do Estado, seja pela adoção de mecanismos eletrônicos de consulta na esfera municipal, seja - em qualquer nível - ao tornar os seus recessos menos opacos para os próprios governantes.
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