A mobilização social é um vigoroso instrumento de defesa de direitos e poderoso para pressionar os Poderes no exercício de seus deveres, obrigações, finalidade pública, observância da supremacia do interesse público, zelo dos recursos públicos e gestão voltada à qualidade de vida do povo. Não existe um futuro promissor para uma nação de cidadãos servis e acomodados que entrega o poder aos legisladores permissivos, a uma justiça leniente e aos governantes negligentes, perdulários e ambiciosos que cobram impostos abusivos, desperdiçam dinheiro público, sonegam saúde, submetem a educação, estimulam a violência, tratam o povo com descaso e favorecem a impunidade dos criminosos.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

O QUE RETÉM A VOZ DA RUA

OPINIÃO, O Estado de S.Paulo - 14/10/2011

As marchas contra a corrupção no feriado da quarta-feira em 18 cidades brasileiras decepcionaram os que torciam para que elas fossem mais concorridas do que as do Sete de Setembro. Tivesse isso acontecido, poderia ser um sinal de que a expressão pública da indignação com o que se passa nos Poderes da República - os "malfeitos", no eufemismo da presidente Dilma Rousseff - estaria enfim ganhando corpo como embrião de um movimento de massa. No Dia da Pátria, 25 mil pessoas saíram de casa em Brasília para externar a sua repulsa pelos políticos. O estopim foi a absolvição, por seus pares, da deputada Jaqueline Roriz, flagrada recebendo dinheiro ilícito antes de se eleger pelo Distrito Federal.

Anteontem, segundo estimativas não confirmadas pelas imagens transmitidas pela TV, não passaram de 20 mil - e nada nem remotamente comparável a isso em outros pontos do País. Em São Paulo, por exemplo, apenas mil pessoas se mobilizaram para percorrer a Avenida Paulista. No Rio, cerca de 2 mil se juntaram na orla de Copacabana. O contraste com as multidões que têm ocupado as ruas no Hemisfério Norte para ventilar o seu descontentamento com os chamados poderes constituídos reforça para muitos a crença - na verdade, o estereótipo - de que o brasileiro é um acomodado. Pior ainda é a comparação com as grandes ondas cívicas da história nacional no último quarto de século: os comícios pelas Diretas Já em 1984 e as passeatas pelo impeachment do presidente Fernando Collor em 1992.

E não se diga que falta foco às atuais manifestações convocadas por intermédio das redes sociais. A bandeira do combate à corrupção se desdobra em demandas concretas, ao alcance, de resto, dos cidadãos minimamente informados. É o caso da demanda pela entrada em vigor da Lei da Ficha Limpa - ela mesma resultante de uma formidável iniciativa popular -, à espera de ser regulamentada pelo Supremo Tribunal Federal. Outra exigência, talvez ainda mais inteligível, é a do fim do voto secreto no Congresso Nacional, graças ao qual Jaqueline, filha do notório ex-governador Joaquim Roriz, se livrou da cassação por quebra de decoro. Mesmo a defesa das prerrogativas do Conselho Nacional de Justiça, órgão de controle do Judiciário, pode ser explicada em poucas palavras aos distraídos.

E não se diga tampouco que faltam despertadores de consciências no País. Na celebração do Dia de Nossa Senhora Aparecida - o maior evento do catolicismo brasileiro -, a Igreja, pela voz de prelados como o arcebispo de São Paulo, dom Odilo Pedro Scherer, e o de Aparecida, dom Raymundo Damasceno Assis, presidente da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), tornou a exortar os fiéis a se manifestar ativamente contra a corrupção. "Quando não somos mais capazes de reagir e nos indignar diante da corrupção", advertiu dom Odilo, "é porque nosso senso ético também ficou corrompido." Decerto a integridade do senso ético de cada qual é condição necessária para dizer "basta!" aos abusos dos poderosos de todo tipo. Mas não é suficiente.

Para surgir e se expressar, a indignação com a rapina do dinheiro público depende de condições objetivas, mais que de um imaginário "caráter nacional" acomodatício. E a primeira dessas condições, ninguém ignora, varia conforme a base material de existência da maioria do povo. Em rigorosamente todos os países onde as ruas foram tomadas nos últimos tempos, a raiz - menos ou mais exposta - da ira popular é o empobrecimento, o desemprego, a escassez de oportunidades, a penúria. No Brasil, no ano anterior ao das Diretas Já, o poder aquisitivo da população diminuíra 15% e o PIB caíra 2,8%. E a recessão provocada pelo Plano Collor pesou pelo menos tanto quanto a esbórnia da República de Alagoas para o clamor pela destituição do presidente.

Hoje, porém, a melhora sem precedentes no padrão de vida de milhões de brasileiros e a sensação geral de otimismo que daí resulta não é que anestesiem as pessoas, mas, à parte quaisquer outras considerações, não as incentivam a protestar contra a corrupção que sabem que existe - e que poderia provocar uma contundente resposta popular se estivesse associada à privação econômica.

COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - Não concordo com a conclusão do editorial de que existe um otimismo anestesiando as pessoas. Ocorre que esta anestesia é resultante da sensação generalizada de impotência e de descrédito. A Constituição brasileira, as demais leis e os Poderes não são confiáveis, pois interagem no sentido inverso ao do clamor popular e do atendimento das demandas por saúde, educação, segurança, moralidade e eficiência do Estado na garantia de direitos sociais e justiça. Acredito que, a medida que os protesto evoluem, o povo vai renascer e reagir em massa com força, liderança e foco. Os poucos aventureiros se somarão à milhões de vozes indignadas, descontentes e insatisfeitas com as imoralidades, ilicitudes e farras dos governantes. E nesta hora, o povo exigirá uma nova e enxuta constituição; leis duras e respeitadas; um regime político mais probo e transparente; e uma justiça mais coativa, ágil e devidamente comprometida com as questões nacionais.

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