A mobilização social é um vigoroso instrumento de defesa de direitos e poderoso para pressionar os Poderes no exercício de seus deveres, obrigações, finalidade pública, observância da supremacia do interesse público, zelo dos recursos públicos e gestão voltada à qualidade de vida do povo. Não existe um futuro promissor para uma nação de cidadãos servis e acomodados que entrega o poder aos legisladores permissivos, a uma justiça leniente e aos governantes negligentes, perdulários e ambiciosos que cobram impostos abusivos, desperdiçam dinheiro público, sonegam saúde, submetem a educação, estimulam a violência, tratam o povo com descaso e favorecem a impunidade dos criminosos.

sábado, 13 de julho de 2013

O GIGANTE VISTO DE FORA

ZERO HORA CULTURA - 13 de julho de 2013 | N° 17490

PROJETO DE NAÇÃO

Especialistas estrangeiros em Brasil discutem as principais causas das manifestações recentes e que mudanças concretas elas trarão para o país


MARCELO GONZATTO

O gigante acordou, como atesta o slogan que descreveu a mobilização popular no Brasil nas últimas semanas, mas estrangeiros dedicados a estudar os movimentos do grandalhão verde-amarelo – os chamados brasilianistas – avaliam que ele agora enfrenta o desafio de se manter desperto para garantir conquistas mais amplas do que a redução nas tarifas de ônibus que lhe interromperam o sono.

Na opinião de alguns dos mais renomados especialistas internacionais em temas brasileiros, consultados por ZH para compor um esboço de como estudiosos de além-fronteiras veem o atual momento no país, o levante das ruas forçou até agora respostas tímidas das autoridades para problemas colossais que incluem a corrupção, a falência do atual sistema político-partidário e a má qualidade dos serviços públicos.

Se o titã tupiniquim passar por cima de obstáculos como a dificuldade dos governantes em propor soluções concretas a curto prazo e a letargia do Congresso para aprovar mudanças profundas, acadêmicos do porte do cientista político inglês Anthony Pereira, diretor do King’s Brazil Institute, entidade vinculada ao prestigiado King’s College, de Londres, avaliam que 2013 poderá ser lembrado como um momento de virada na história do Brasil. Para isso, porém, consideram necessário manter a mobilização das ruas a despeito de circunstâncias que favoreceram seu surgimento, mas podem comprometer sua continuidade: a falta de líderes e a multiplicidade de reivindicações.

A greve realizada quinta-feira é vista como um novo desdobramento da insatisfação popular, mas o sentimento majoritário entre os exegetas da realidade brasileira ainda é de um certo ceticismo em relação ao alcance das reformas prometidas aos manifestantes em nível municipal, estadual e federal.

– O desafio é similar ao do movimento Occupy (inspirado pela ocupação de Wall Street, nos EUA, em protesto contra a crise econômica): de que maneira prolongar o entusiasmo e a energia se não forem alcançadas conquistas claras. Não estou certo do que virá a seguir – analisa o historiador americano Marshall Eakin, especialista em História do Brasil da Vanderbilt University e autor de vários livros sobre o país.

Se o gigante tombar de sono outra vez antes de mudar o rumo do país, alerta Eakin, talvez desperdice um conjunto de fatores que o puseram a andar pela primeira vez desde a busca pelo impeachment do então presidente Fernando Collor no distante ano de 1992.


AS RAÍZES DA REVOLTA

O pano de fundo das marchas populares, na análise de Eakin, Pereira e do diretor do Programa de Estudos Latino-americanos da universidade americana Johns Hopkins, Riordan Roett, são paradoxalmente a melhoria das condições de vida e o crescimento da classe média, que elevaram o nível de expectativa da população em relação a áreas como transporte, saúde e educação.

– Há uma sensação crescente de que o governo está fora de sintonia com a sociedade. Altos impostos, inflação, gastos excessivos em projetos de construção, educação deficiente e unidades de saúde inadequadas alcançaram um ponto intolerável. A ascensão da classe C adiciona um novo elemento – 35 milhões a 40 milhões de novos consumidores que começaram a questionar as atuais políticas porque estão cada vez mais conscientes das carências da sociedade – analisa Roett, também fundador do Centro de Estudos Brasileiros e autor de livros como Brasil: Política em uma Sociedade Patrimonialista.

Esse novo contexto social entrou em convulsão estimulado por elementos pontuais como os reajustes nas passagens de ônibus e a visibilidade trazida pela realização da Copa das Confederações, no mês passado. O início da competição também aumentou o contraste entre a boa situação dos novos estádios e a precariedade de escolas e hospitais. Ao mesmo tempo, o chamado “legado” da Copa 2014 não produziu os resultados desejados.

– O Brasil investiu grandes quantias de dinheiro para a Copa e para as Olimpíadas, bilhões de dólares, mas muitos benefícios, como as melhorias nos aeroportos, não estão saindo como o esperado – sustenta a professora emérita de Antropologia da Universidade da Flórida Maxine Margolis, pioneira no estudo da migração de brasileiros para os Estados Unidos e autora do livro Adeus, Brasil: Emigrantes da Terra do Futebol e do Samba.

Segundo Margolis, a corrupção também faz parte dessa equação – embora nem sempre seja fácil traduzir as peculiaridades nacionais da falta de ética na política. Para explicar a seus conterrâneos americanos o que foi o Mensalão, Maxine criou a expressão “big monthly payoff”, ou algo como “grande pagamento mensal”.


A REAÇÃO DO GOVERNO

Sob a sombra do gigante desperto, restava aos governantes e políticos brasileiros dar respostas concretas às demandas populares. Em geral, a avaliação de quem observa o Brasil de longe é de que a disposição das autoridades em promover mudanças ficou muito aquém do desejado.

– A reação dos políticos tem sido lenta, hesitante, sem decisão e improdutiva. O esforço para desmobilizar as manifestações mediante concessões simples como reduzir as tarifas de ônibus fracassaram em responder às demandas mais fundamentais e que não são fáceis de resolver no curto prazo: mais investimento em educação, saúde e infraestrutura. O desafio para a presidente Dilma e outros políticos é como criar uma resposta rápida que satisfaça demandas de longo prazo – afirma Marshall Eakin.

A avaliação de como a presidente Dilma lidou com o clamor popular não é unânime. Para a antropóloga Maxine Margolis, a presidente foi bem ao propor medidas como um plebiscito para encaminhar reformas políticas. Para ela, o maior entrave às exigências da população está no Legislativo.

– Acredito, e espero, que a greve desta semana tenha um grande impacto e finalmente consiga fazer com que o ocioso Congresso brasileiro (como o Congresso americano) aprove as mudanças propostas pela presidente Dilma – afirma Maxine.

Eakin discorda:

– Parece que os esforços em convocar um plebiscito procuram atender a questões fundamentais de forma geral, não com programas e projetos específicos. O plebiscito já parece um “não-começo”. A essa altura, a resposta de Dilma e outros políticos me parece completamente inadequada.

O brasilianista alemão Christian Hausser, doutor em História Latino-americana atualmente vinculado à Universidade de Talca, no Chile, faz uma avaliação intermediária.

– As propostas de Dilma Rousseff são certamente importantes, mas qual é o seu espaço de ação? Uma pessoa não pode revolucionar um sistema partidário ou abolir a corrupção e o clientelismo por decreto. E veja o papel deplorável que o ex-presidente Lula desempenhou no escândalo de corrupção que envolveu o seu próprio partido e administração – argumenta Hausser, autor do livro No Caminho da Civilização: História e Conceitos de Desenvolvimento Social no Brasil.


OS PARTIDOS EM XEQUE


Um projeto de mudança nacional, na visão dos brasilianistas, não poderá deixar de lado uma profunda reforma política. Segundo os acadêmicos, um dos principais saldos deixados pelas manifestações é o elevado nível de rejeição do povo brasileiro aos atuais partidos. Anthony Pereira afirma que o desencanto tem relação com o mecanismo de busca do poder.

– Os partidos se transformaram em máquinas eleitorais que perderam suas conexões orgânicas com movimentos sociais, comunidades e trabalhadores. Eles precisam financiar suas campanhas, então tendem a buscar dinheiro dos privilegiados: pessoas e empresas abastadas. Falam sobre o bem público, mas trabalham para interesses privados. Não acho que democracias possam sobreviver sem partidos, mas o sistema partidário precisa ser reenergizado e redemocratizado pelos cidadãos – observa Pereira.

Riordan Roett é ainda mais incisivo:

– O sistema eleitoral brasileiro é macabro. Garante pouca, se é que garante alguma representação legítima. É conduzido por máquinas interessadas em se eleger e pouca coisa mais. Por que qualquer pessoa inteligente apoiaria essa classe de políticos? Ainda é incerto se Brasília entenderá isso ou se o “ancien régime” entrará em crise com resultados imprevistos.

Pereira, que herdou o sobrenome de avós portugueses, afirma que as alternativas em debate são complexas e carregam prós e contras, como a implantação do voto distrital ou do financiamento público de campanhas. Mas, para o especialista inglês, o problema está mais centrado no reiterado descumprimento das regras do que nas regras em si.

– O problema real não parecem ser as normas formais, mas o fracasso em garantir a aplicação das normas vigentes. O financiamento clandestino de campanha parece ser a regra, e parece haver poucas punições por contribuições irregulares e por gastar mais do que o declarado – analisa Pereira.


A GREVE E O FUTURO DO MOVIMENTO

Ninguém previu que o gigante iria se erguer e bater pé pelas ruas das principais cidades do país, insone, noites adentro. Agora, fora do Brasil, a grande dúvida é quais serão seus próximos passos. Um dos mais recentes, a greve de quinta-feira, também deixou os acadêmicos estrangeiros surpresos.

– Li um pouco sobre isso nos jornais hoje (terça-feira). Parece ser uma ação mais tradicional, do tipo que era comum nos anos 80. Isso muda um pouco o perfil dos protestos, mas a relação entre essa ação e as manifestações que vimos em tantas cidades ainda não está clara – analisa Anthony Pereira.

Marshall Eakin acredita que o grande desafio para os próximos meses é a mobilização nacional se sobrepor à lentidão estatal:

– A redução da tarifa de ônibus é importante, mas é uma concessão com a qual políticos esperavam desmobilizar os protestos. Essas manifestações têm o potencial para mudar a cena política se conseguirem alguma sustentabilidade, isto é, se conseguirem durar até o próximo ano. É um desafio para manifestantes, que têm muitas pautas e demandas diferentes e rejeitam qualquer hierarquia, porta-vozes oficiais ou líderes.

Outro integrante do King’s Brazil Institute, o americano Jeff Garmany, acredita que a Copa do Mundo em 2014 poderá desempenhar o papel catalisador que a Copa das Confederações representou no mês passado:

– Parte de mim acredita que os protestos vão voltar durante a Copa, mas não estou certo de que as pessoas conseguirão recapturar a mágica de junho de 2013. Aqueles momentos em que centenas de milhares de pessoas marcharam de forma pacífica são como eventos únicos em uma geração. Mas quem sabe o povo não sairá às ruas em um número ainda maior no ano que vem?

Além das fronteiras do país, os olhos estarão atentos ao gigante recém-desperto.

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