A mobilização social é um vigoroso instrumento de defesa de direitos e poderoso para pressionar os Poderes no exercício de seus deveres, obrigações, finalidade pública, observância da supremacia do interesse público, zelo dos recursos públicos e gestão voltada à qualidade de vida do povo. Não existe um futuro promissor para uma nação de cidadãos servis e acomodados que entrega o poder aos legisladores permissivos, a uma justiça leniente e aos governantes negligentes, perdulários e ambiciosos que cobram impostos abusivos, desperdiçam dinheiro público, sonegam saúde, submetem a educação, estimulam a violência, tratam o povo com descaso e favorecem a impunidade dos criminosos.

domingo, 30 de junho de 2013

A DECADÊNCIA DO TRANSPORTE PÚBLICO

ZERO HORA  - 30 de junho de 2013 | N° 17477

CARO E INSUFICIENTE

NILSON MARIANO

Um relatório do poder público sobre o serviço de ônibus oferecido aos gaúchos mostra que, na Capital, a tarifa é cara (cresceu muito acima da inflação), a frota aumentou muito pouco nos últimos anos e o número de passageiros cai ano após ano. Resultado disso é um crescimento vertiginoso no índice de reclamações.

A percepção do porto-alegrense de que o transporte público se apequenou, com tarifa alta, serviço insuficiente e falta de qualidade, é confirmada pela exatidão indesmentível dos números. A começar pelo bolso de quem paga para andar de ônibus. A Capital pratica o segundo bilhete mais caro do país – há 10 anos oscilava entre a 12ª e a 14ª posição.

Não foi sem propósito que Porto Alegre efervesceu como o embrião dos protestos que eclodiram pelo Brasil contra a tarifa do transporte coletivo. Durante a vigência do real como moeda, de 1994 até o ano passado, a passagem de ônibus subiu duas vezes mais que a inflação. Foram 670,27% em tarifaços, enquanto o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) ficou em 299,61%.

Tarifa exagerada não significou, como se poderia imaginar, melhoria no atendimento. Dados da própria Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) apontam que cresceu o descontentamento dos passageiros. O total de reclamações, sobre os mais variados motivos, pulou de 7,9 mil (em 2004) para 20,2 mil (2011).

O estrilo é mais alarmante naquilo que inferniza a vida do usuário – a superlotação, o descumprimento de horários e os atrasos nas viagens. Em 2011, mais de 7,9 mil se queixaram destes itens, em um aumento de 430% em relação a 2004.

O que acontece em Porto Alegre não é isolado. O professor de Engenharia da Universidade de Brasília (UnB) Joaquim José de Aragão lamenta que a mobilidade urbana nunca frequentou a agenda dos governantes. Não como deveria. Diante da inépcia das autoridades, Aragão diz que os empresários assumiram o controle.

– Começaram a tomar o poder, a ponto de se tornarem planejadores. E, para eles, transporte bom é com ônibus cheio, e o passageiro que se vire – critica.

Outro indicativo da decadência no transporte público de Porto Alegre é a queda no número de passageiros. Nos últimos 15 anos, houve uma redução de 6,6 milhões de bilhetes, na média mensal. Em 1998, quando a Capital tinha 1,3 milhão de habitantes, eram 25,9 milhões de passagens por mês. Em 2012, com 1,4 milhão de habitantes, o movimento caiu para 19,3 milhões.

Várias causas explicam o esvaziamento. Uma delas é a melhor renda do brasileiro, que foi incentivado a comprar o automóvel ou a motocicleta. Para o professor do Laboratório de Sistemas de Transportes (Lastran) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) João Fortini Albano, a motorização em massa gerou um desequilíbrio, o qual se refletiu na alta das tarifas.

– A redução da demanda pode ser a maior causa do aumento na passagem – observa Albano, lembrando que há menos clientes para ratear o custo do bilhete.

Se carros e motos invadiram as ruas, a frota de ônibus não acompanhou a expansão. Houve uma renovação – a idade média dos veículos é de quatro anos –, mas não a ampliação da oferta de assentos.

Mas como fazer com que as pessoas deixem o carro na garagem e peguem o ônibus? O diretor presidente da EPTC, Vanderlei Cappellari, diz que a estratégia é o investimento em outros tipos de transporte. A grande aposta é o projeto do metrô, de 25,8 quilômetros de extensão, que ligaria o Centro à Zona Norte.

Outra é o sistema BRT (na sigla em inglês, transporte rápido de ônibus). Em obras para a Copa de 2014, o BRT vai estender os atuais 55 quilômetros de corredores para 120 quilômetros. Na avaliação de Cappellari, quando o complexo estiver interligado e operando, o porto-alegrense terá o desejável para se mover.



Hora do rush, hora do horror

PAULO GERMANO

Espremidos, estressados, enlatados. Entre quarta e sexta-feira, a reportagem de Zero Hora cruzou Porto Alegre acompanhando o suplício de passageiros que dependem do transporte público nos horários de pico.

Você mesmo, se eventualmente pega ônibus, já deve ter sido obrigado a ficar em pé – mas Ricardo Löff, 40 anos, nunca, em nenhum minuto dos últimos 12 anos, conseguiu se sentar no ônibus. O banco estofado é como o cume do Everest para Ricardo, que sai de casa às 7h, enfrenta por meia hora a superlotada linha Rápida Rubem Berta, passa o dia carregando e descarregando bagagens no aeroporto Salgado Filho e, no fim da tarde, retorna pelo mesmo Rápida Rubem Berta sem qualquer esperança de assento.

– Deveria ter desconto para quem viaja em pé – lamenta ele, espremido por passageiros.

Em questão de minutos, enquanto o veículo atravessa a zona norte da Capital, a história de Ricardo não espanta mais.

– Eu também nunca me sentei nem por um segundinho – diz a vendedora Judite de Souza, 56 anos, usuária da linha há sete anos.

Seria o Rápida Rubem Berta, do consórcio Conorte, o pior ônibus da cidade? Não. Para se ter uma ideia, passageiros colocaram um apelido sugestivo no T11, linha da Carris inaugurada com entusiasmo em 2006 por cortar Porto Alegre de norte a sul: Minhocão do Horror. A partir das 17h, você acomoda o pé no primeiro degrau da entrada e entende por quê. O minhocão cospe gente, avisa o motorista com a expressão aflita.

Boa parte da frota do T11 é formada por veículos articulados, com o dobro do comprimento dos ônibus normais. Ainda assim, as pessoas se amontoam como frangos em um caminhão de carga fora da lei. Muitos descem pela porta de entrada, não pagam passagem, porque é impraticável caminhar míseros três metros para alcançar a catraca. No meio da multidão, a empregada doméstica Terezinha Lopes da Silva, 63 anos, se equilibra com habilidade entre os cotovelos.

– A senhora tem mais de 60 anos, tem o direito de viajar sentada – observa o repórter.

– Mas ninguém cede o lugar. Ali atrás, pode ver, tem uma moça sentada com um menininho no assento ao lado. É só botar o filho no colo – ela balança a cabeça em reprovação.

Porta fechou no peito

Aliás, todos sentados ali parecem ter menos de 60 anos. E todos fingem não ouvir dona Terezinha, que deixa o trabalho no bairro Petrópolis às 17h para chegar em casa, na Restinga, às 19h45min. Demora muito porque ela pegará outro ônibus logo adiante, o Restinga Velha, mais um que entope na hora do rush. Zero Hora escolheu justamente a hora do pico para testar uma série de linhas da Capital – algumas funcionam bem em outros horários, mas poucas funcionam bem no horário que mais importa.

No Restinga Nova, do consórcio STS, por exemplo, é comum os passageiros orientarem o motorista sobre quando fechar a porta traseira: é tanta gente dependurada nas barras de metal que nem o cobrador consegue enxergá-la. Não faz muito tempo, conta o segurança Jones Augusto Meira, 50 anos, um rapaz ficou preso quando a porta lhe fechou no peito às 18h30min. Sem saber o que ocorria lá atrás, o motorista arrancou com o garoto de cabeça para fora e meio corpo para dentro – o braço de dentro batia no vidro em desespero, mas o ônibus foi acelerando, as pessoas gritando para o motorista brecar, e no fim o rapaz saiu ileso.

– A gente fica tão colado um no outro que, vou te contar, quando alguém vai embora chega a dar saudade – brinca o instalador de móveis Marcos Cardoso, 42 anos.

Das periferias ao centro da cidade, não há público imune às célebres latas de sardinha. No D43, a linha “universitária direta” da Carris, a jovem classe média da Capital aparece empilhada entre casacos de grife e cabelos da moda. A partir das 7h20min, na Avenida Osvaldo Aranha, o D43 recolhe aos borbotões estudantes da PUC e do Campus do Vale da UFRGS, cujas aulas começam em pouco mais de meia hora. Danielle Rosa de Almeida, 19 anos, ingressa de tênis no ônibus, mas leva na bolsa o sapato de salto.

– Não dá para ficar de salto no ônibus, é desconfortável. Quando estou chegando à faculdade, a maioria das pessoas já desceu, então posso me sentar e fazer a troca – ela conta.

De norte a sul, de ricos a pobres, não há distinção alguma: a superlotação é democrática em Porto Alegre.



12 minutos de trabalho por bilhete

O porto-alegrense precisa trabalhar oito vezes mais do que o morador de Buenos Aires para comprar um bilhete de ônibus. Levando-se em conta o salário médio na Capital (R$ 2.983,20, estipulados pelo IBGE) e o preço da tarifa, terá de suar exatos 12 minutos e sete segundos se quiser andar no transporte coletivo. Para os portenhos, é um minuto e quatro segundos.

Quem calculou o quanto se deve trabalhar para pegar um ônibus, em diferentes cidades (veja quadro ao lado), é o professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) Samy Dana. Feito em parceria com o economista Leonardo de Siqueira Lima, o estudo se baseia no salário médio dos habitantes de uma metrópole e no custo da tarifa. Resultado: os brasileiros ganham menos e dispõem de um dos transportes públicos mais caros do planeta.

– É estranho, mas aqui tudo é muito caro, sem falar que a qualidade é ruim – diz Samy.

Pelo levantamento da FGV, o morador de Porto Alegre precisa fazer o dobro de esforço que um usuário de Paris e Nova York para comprar um bilhete. E, no momento de usufruir o serviço, entrará num veículo menos confortável, que nem sempre cumpre o horário e pode chegar atrasado ao destino. Além de não receber a mínima informação sobre tempo de espera na parada de passageiros.

– Para o nosso azar, além de perdermos em quantidade, pagamos por algo que não temos: um serviço de qualidade – lamenta.

Samy entende que é o momento de se avaliar o lucro das empresas. Em Porto Alegre, hoje, corresponde a 6,33% da tarifa. O professor da FGV diz que é função do governo coibir abusos. Tarefa difícil, porque determinados empresários do setor costumam financiar campanhas eleitorais de políticos, que depois retribuem deixando tudo como está.

– O lucro Brasil terá de ser repensado. As empresas devem ganhar de forma coerente – alerta Samy.

Tarifa cara e um transporte deficiente empurram a população para o automóvel ou para a motocicleta. A equação é inevitável, para o professor da FGV:

– As pessoas calculam o tempo que perdem na parada de ônibus e nos deslocamentos. Acabam optando pelo transporte privado.

A migração, que entope as cidades com engarrafamentos, é incentivada justamente por quem deveria gerenciar o transporte público. Professor de gestão em urbanismo na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Carlos Hardt ressalva que houve um “aumento desproporcional” na frota de carros e motos a partir do governo Lula.

– Muitas pessoas, com a aquisição do seu primeiro veículo, passaram a utilizá-lo cotidianamente – diz Hardt.

Os números provam. Em 2003, Porto Alegre tinha 432,4 mil carros e 36,2 mil motos. No ano passado, a frota saltou para 594,2 mil e 80,4 mil, respectivamente. Em menos de uma década, foram despejados nas ruas 206 mil novos veículos particulares – 44% de aumento. Enquanto isso, no período, apenas 65 ônibus foram acrescentados à malha pública.


O SUOR DO PASSAGEIRO
O professor da Fundação Getúlio Vargas Samy Dana calculou os minutos que o usuário precisa trabalhar para pagar a tarifa em diferentes cidades. O levantamento é em parceria com o economista Leonardo de Siqueira Lima, da FGV

Cidade Minutos, trabalhados
São Paulo 12,8
Porto Alegre 12,7
Rio de Janeiro 12
Florianópolis 11,8
Londres 11
Lisboa 9,9
Santiago do Chile 9,1
Tóquio 9
Madri 6,5
Nova York 6,3
Paris 6,2
Ottawa 5,8
Buenos Aires 1,4



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