A mobilização social é um vigoroso instrumento de defesa de direitos e poderoso para pressionar os Poderes no exercício de seus deveres, obrigações, finalidade pública, observância da supremacia do interesse público, zelo dos recursos públicos e gestão voltada à qualidade de vida do povo. Não existe um futuro promissor para uma nação de cidadãos servis e acomodados que entrega o poder aos legisladores permissivos, a uma justiça leniente e aos governantes negligentes, perdulários e ambiciosos que cobram impostos abusivos, desperdiçam dinheiro público, sonegam saúde, submetem a educação, estimulam a violência, tratam o povo com descaso e favorecem a impunidade dos criminosos.

sábado, 29 de junho de 2013

MUNDO EM GESTAÇÃO


ZERO HORA 29 de junho de 2013 | N° 17476

Tanto motivo que nem cabe...

Desvinculada das instituições, a geração que embala os atuais protestos precisa encontrar o caminho de uma unificação política


POR MARCOS ROLIM*

Haverá ondas e refluxos, mas os protestos das ruas e das redes vieram para ficar. Eles são uma janela aberta para renovar a triste e sufocante política brasileira. Seus resultados – para além das conquistas já obtidas – são incertos como a vida, mas o Brasil não será mais o mesmo. Os governos e os conservadores de todos os matizes não apreciam estes movimentos, porque não os controlam. Os burocratas, sabe-se, veneram o cálculo e temem a atividade autônoma. Os que lutam por mudanças, pelo contrário, desaprovam o silêncio e a submissão. Os jovens indignados ajudam a identificar uns e outros nesta hora. A “voz das ruas” nos mostra, para além dos interesses políticos em jogo, que nosso mundo está grávido de outro.

A onda de protestos tem algo dos caras-pintadas e um tanto do maio de 68, mas o fenômeno é totalmente diverso. É o primeiro grande movimento social no Brasil promovido por uma geração desvinculada das instituições tradicionais da política, da religião e da indústria cultural; nomeadamente os partidos, as igrejas e os veículos de comunicação social. São mobilizações “de borda”, tão heterogêneas que há um pouco de tudo nelas, mas seu núcleo é o de jovens que desprezam os discursos hegemônicos. Eles “descolaram”, porque perceberam como falsidade e injustiça o que nosso mundo toma como “realismo”. Estes jovens nasceram na democracia sem política que temos. Por isso, não possuem memória de luta coletiva alguma. A par das contradições e da inexperiência, entretanto, prezam a liberdade e as diferenças; abraçam causas humanitárias, defendem a natureza e abominam o preconceito, a corrupção e a hipocrisia. Foram eles que repudiaram Renan Calheiros e que fizeram a campanha “Feliciano não me representa”. Os gênios, então, os chamaram de “ativistas de sofá”. Naquela altura, já se avizinhava o momento em que uma manifestante escreveria em um cartaz: “Tanto motivo que nem cabe aqui”.

O problema de fundo é que não há instituição no Brasil que ofereça aos jovens plataforma viável para seus sonhos. Durante duas décadas, o PT foi isso. Então, chegou ao poder e dissolveu seu potencial ético e transformador em meio à colonização da máquina pública, às concessões infinitas à direita e à proverbial conivência com a corrupção. O resultado foi uma orfandade que, agora, apareceu para cobrar a conta. O sistema político brasileiro é um cadáver insepulto e a experiência de 10 anos de governo do PT serviu também para acirrar a crise de representação por duas vertentes: pelos exemplos de cinismo simbolizados na aliança com o que de pior a política brasileira já produziu e pelo “beijo da morte” do Estado que cooptou as principais entidades de representação popular transformando-as em caricaturas.

Os enormes investimentos para a Copa ergueram esfinges que os jovens decifraram. Já era do domínio mineral que a roubalheira seria grande, mas o contraste entre os estádios “padrão Fifa” e as escolas e os hospitais sem padrão algum foi encoberto pelo discurso ufanista dos governos, dos parlamentos e da mídia. Com raras exceções (lembro do Santana batendo nesta tecla), fomos engolfados pelo “oba-oba”, e o discurso hegemônico foi suprimindo a diferença até torná-la improvável. Quando os manifestantes apontam o problema, evidenciam a profundidade do abismo a ser transposto.

Muitas das reivindicações poderiam ser realidade, inclusive a “tarifa zero”, fossem outras as prioridades dos governantes. A ideia, aliás – por ironia –, foi de um grupo de técnicos do PT, na época em que a palavra mudança era mais do que um slogan para o partido. Hoje, ela virou “populismo” para o prefeito de Saão Paulo, Fernando Haddad (PT), com o que concorda o governador Geraldo Alckmin (PSDB). Ambos “gente fina”, do tipo que prefere viajar a Paris após conceder os reajustes às tarifas de ônibus e metrô e se negar a receber os manifestantes.

Há quem insista que os indignados “não têm uma pauta clara”. Seria mais exato lembrar, entretanto, que os partidos tradicionais e seus governos é que não possuem posição sobre quase nada. Em meio às manifestações, temas como “Ato médico”, “Cura gay” e PEC 37 eram debatidos na Câmara que, recentemente, aprovou nova lei de drogas, profundamente reacionária. Ganha uma passagem só de ida para Teerã quem souber qual é a posição do governo federal e da maioria dos partidos sobre esses e outros pontos polêmicos. Apresentar soluções para o país, afinal, envolve o risco de desagradar grupos. Melhor, então, nem tentar, evitando o desgaste. O “grito que vem das ruas” é o avesso desse pragmatismo e da incompetência que ele legitima.

O que estamos assistindo tende a se ampliar em 2014, ano da Copa e de eleições. Na oposição, há quem conspire contra a democracia. No governo, possivelmente o medo seja convocado para barrar a esperança. A história, então, se repetiria como farsa (dupla ironia). Estas são as dinâmicas que irão atrair o mundo antigo. Para as perspectivas do mundo em gestação, entretanto, os novos movimentos erguem questões centrais. Apontarão os protestos para a retomada da cidadania no Brasil?

Para o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, o processo de individualização corroeu a cidadania, o que só pode ser contrastado pela ação coletiva. A experiência nos movimentos sociais permitiria o reencontro dos indivíduos com a esfera pública, onde se transita de consumidor a cidadão. O núcleo desses movimentos inventará nova organicidade? As formas “líquidas” de convocação e luta encontrarão portos – ainda que precários – que viabilizem o debate democrático (vale dizer: criterioso) e a escolha consciente de caminhos coletivos? Os movimentos serão capazes de se livrar da violência e de seus perigos? Cedo, ainda, para saber.

É certo que os movimentos precisam se livrar dos “sem noção”, que acreditam nas pedras e no fogo, e também dos agentes infiltrados, interessados em regimes de pedra e fogo. O caminho para isso passa pela unificação dos protestos e por uma reforma política profunda. Afinal, é preciso passar o País a limpo e dar ao defunto sistema político seu merecido enterro.

*Jornalista e sociólogo, professor de Direitos Humanos do IPA

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