A mobilização social é um vigoroso instrumento de defesa de direitos e poderoso para pressionar os Poderes no exercício de seus deveres, obrigações, finalidade pública, observância da supremacia do interesse público, zelo dos recursos públicos e gestão voltada à qualidade de vida do povo. Não existe um futuro promissor para uma nação de cidadãos servis e acomodados que entrega o poder aos legisladores permissivos, a uma justiça leniente e aos governantes negligentes, perdulários e ambiciosos que cobram impostos abusivos, desperdiçam dinheiro público, sonegam saúde, submetem a educação, estimulam a violência, tratam o povo com descaso e favorecem a impunidade dos criminosos.

sábado, 29 de junho de 2013

SOBRE DEMOCRACIA E ESPAÇO PÚBLICO


ZERO HORA 29 de junho de 2013 | N° 17476


Ao defenderem o que é público, os manifestantes estão no exercício pleno de seus direitos como cidadãos

POR EBER PIRES MARZULO*

A invenção da democracia ocorre, por princípio, com a instauração do espaço público. Ambos, democracia e espaço público, são constituintes da moderna sociedade ocidental. A colonização do espaço público asfixia, logo, a experiência democrática. Quando se tem um controle do espaço público, seja pelo Estado, seja pelo privado, a democracia está em risco. É por isto, e nada mais, que a conquista do espaço público implica na expansão da democracia e a experiência democrática alastra o espaço público.

Na tradição do pensamento moderno, os protestos brasileiros das últimas semanas colocam a questão duplamente. 1) Por sua pauta: a luta pelo direito ao uso do espaço público expressa na reivindicação de garantia do direito de ir e vir com passagens dos transportes coletivos mais acessíveis, tendo como horizonte de expectativa a gratuidade. 2) Pela forma: a ocupação de vias e praças, públicas por princípio.

Ao defenderem o que é público, os manifestantes estão no exercício pleno de seus direitos como cidadãos. O direito à resistência da limitação do espaço público é um princípio democrático que extrapola os limites do estado de direito. É por meio da expansão da democracia que se instauram os direitos, logo não são os direitos que limitam a experiência democrática. Cabe aos cidadãos a defesa da democracia e de seu espaço, mesmo contra o estado e o direito. Trata-se aqui de uma questão de legitimidade do exercício da cidadania que já estava lá na Declaração Universal dos Direitos do Homem do Cidadão, de 1798.

Se a questão aparece com relevância nos milhões de brasileiro que ocupam as ruas das principais cidades do país, em Porto Alegre tem características ainda mais nítidas. As manifestações recentes têm como centro o espaço público. Os protestos na capital gaúcha, desde 2011, têm se caracterizado pela defesa do uso coletivo do espaço público e contra o privilégio dado ao automóvel. Em manifestações locais organizadas por rede de vizinhos contra a implantação de viadutos; protestos na região central contra o aumento das tarifas do transporte público; manifestações contra a liberação do Largo Glênio Peres, defronte ao Mercado Central, para utilização como estacionamento – Largo Vivo; atos contra a colocação de ícones de companhia patrocinadora da Copa do Mundo em locais públicos; fechamento de vias com uso de bicicletas – conhecido como Massa Crítica; movimento Chave por chave como garantia de habitação para os moradores a serem removidos pelas obras da Copa; ocupação de vagas para estacionamento com atividades culturais – Vaga Viva; acampamento em parque público contra o corte de árvores para a duplicação de avenida. Saliente-se a conexão difusa entre ações de caráter internacional, como o Massa Crítica e o Vaga Viva.

Vistas em seu conjunto, as manifestações apontam nitidamente para a emergência de uma consciência civil em defesa do espaço público e contrária à priorização dada pelas ações públicas aos interesses privados. Milhares de pessoas saírem às ruas em todo o país parando as principais cidades para reivindicar passagens de transporte coletivo mais barata e criticar gastos públicos bilionários com obras supérfluas e privadas, como estádios de futebol, é ação pública de conquista do que é público. Ruas e avenidas ocupadas por marchas são a expressão visível da disputa contra a apropriação privada do que é público. É exemplo de conquista democrática.

Há algo de particularmente relevante nos protestos do ponto de vista do planejamento urbano, pois, ao mesmo tempo que explicitam a inexistência de debates públicos sobre as decisões governamentais, que intervêm diretamente na vida cotidiana da população da cidade e da região metropolitana, alinham-se às políticas públicas urbanas desenvolvidas nas capitais democráticas do mundo ocidental. Se o primeiro aspecto demonstra um grave retrocesso na experiência de democracia participativa que inseriu Porto Alegre como referência mundial, o segundo coloca nossos gestores públicos na retaguarda do que vem se estabelecendo desde os anos 1990 como consenso em termos de políticas públicas de mobilidade, isto é, a priorização do transporte público confortável, do transporte individual não motorizado ou ciclo motorizado e do deslocamento a pé. Mas nem tudo são perdas. Nossas mobilizações estão sintonizadas com a contestação mundial e com o sentido das intervenções urbanas mais recentes nas principais cidades do mundo.

Nem só a luta pelo transporte público acessível, eficiente e confortável é atual. Os atos contra a decisão da prefeitura de cortar árvores para aumentar a quantidade de pistas em avenida da orla do Guaíba na região central da cidade soam sintomáticos da sintonia com o que há de mais avançado nos movimentos sociais urbanos atuais. Foram dias de protesto e acampamento, repetindo a tática utilizada nos últimos anos em diferentes pontos do planeta em movimentos cuja pauta foi a crise financeira internacional no Occupy nos EUA e nos Indignados na Espanha, passando pelas lutas democráticas no norte da África, em especial na Praça Tahrir, no Egito, até as lutas ainda em curso em Istambul na Praça Taksim. Os combates políticos na Praça Taksim têm particular semelhança com estes de Porto Alegre, por tratar, em seu princípio, de protestos contra a tentativa do governo turco de privatizar parte da Praça.

Anacrônico seria uma palavra gentil para nomear o que significa, no presente, investir no aumento de pistas para automóveis, em viadutos, na construção de estacionamentos e aumento de tarifas do transporte público. Anacrônico, pois o esgotamento do modelo de deslocamento intraurbano e metropolitano baseado no automóvel é um consenso.

Felizmente, nada mais contemporâneo e democrático que a ocupação das ruas e avenidas de grandes e médias cidades do país em defesa do que é público por milhares de pessoas. Tendo à frente uma geração que mostra a cidade desejada. Ocupação do espaço público como ato performático que instaura o que quer: a reconquista do público.

*Professor do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional (Propur) da Faculdade de Arquitetura da UFRGS e coordenador do Grupo de Pesquisa Identidade e Território (GPIT)

2 comentários:

Vinicius Galeazzi disse...

O espaço público e a cidadania andam juntas e a sua conquista e fruição qualificam a vida da cidade e a democracia e exigem uso contínuo e eterna vigilância. Estamos, neste dia 3 de julho, precisando defender o nosso Morro Santa Teresa, como espaço público, parque de preservação de imensa riqueza natural no coração de Porto Alegre. Precisamos defender nosso morro como Parque Ambiental, na votação na Câmara de Vereadores, pois o perigo de vê-lo vendido ainda ronda.

Vinicius Galeazzi disse...
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