ZERO HORA 29 de junho de 2013 | N° 17476
DESEJO DE RESISTIR
Enquanto o Estado deve assumir postura não autoritária, aos jovens cabe debater e refazer as instituições
POR JORGE BARCELLOS*
Um dos problemas da teoria marxista da história assinalada pelo sociólogo e historiador norte-americano Richard Sennett é o fato de que sua noção de sistema de classes tornou a consciência “vertical” em lugar de “horizontal”. Nossa consciência passou a se orientar para quem está acima ou abaixo e não para os semelhantes: “a desigualdade antecede a fraternidade”, diz. Por essa razão, a consciência herdada do marxismo adquiriu um caráter militar, pois não se pode ser consciente no mundo sem combater as condições que os outros nos impuseram, principalmente a exploração. Nesse universo, não há trocas positivas com inimigos.
Essa é a consciência de parte dos jovens que ocupam as ruas. Eles têm um desejo verdadeiro de resistir, mas não sabem a que ou a quem. Sua consciência não é coletiva, é grupal, daí a enormidade de agendas que defendem nos protestos. É o que leva a sua esquizofrenia caracterizada por uma divisão entre um comportamento agressivo em relação aos outros, os políticos, mas generoso em relação aos “camaradas”. O problema é que isso nada tem a ver com solidariedade e negociação, elementos essenciais na vida pública que pedem que nos relacionemos justamente com o que é diferente, no caso, o Estado. É a forma encontrada por jovens anônimos para partilhar a vida pública – a “partilha do sensível” de que fala o filósofo francês Jacques Rancière.
Entretanto, fazer dos políticos um inimigo não resolverá o problema da criação de mais políticas públicas e sociais, assim como criminalizar os jovens em nada contribuirá para a transformação da sociedade. Não basta ao movimento organizado pelas redes colocar o ativismo social acima do ativismo político. É preciso produzir boas discussões sobre o tipo de solução que querem para os problemas que apresentam. Estamos todos de acordo sobre a necessidade de resolvermos os males dos capitalismo, mas como construir uma solução com instituições políticas desacreditadas pela população?
A confiança na política tem estado muito abalada e piora com a constatação da desigualdade vivida no cotidiano – o preço das passagens. Mas permitir movimentos de violência só aumenta o terror e, por isso, as organizações de jovens devem superar a espontaneidade inicial dos protestos e encontrar um meio de combatê-la. Devem substituir a agenda nacional pela agenda comunitária. Isso deveria ser parte da agenda. Rejeitam a política, mas são movimentos políticos, e a ausência em reconhecer a necessidade de organização política, de lideranças, se viu nos movimentos: o que era aquela disputa pelo caminho das passeatas se não o efeito de que, sem lideranças, sequer um caminho é possível construir juntos?
A consciência dos “pseudo-organizadores” negava qualquer identidade política, de classe ou raça, preferindo colocar em seu lugar a conexão dos diversos grupos e interesses sociais conectados via internet, a única verdadeira vitoriosa dos processos. A política dos jovens é boa por sua vitalidade e entusiasmo, mas é, numa palavra, bagunçada e, por isso, um alvo fácil para a extrema esquerda, que adora a violência, e para a extrema direita, que adora manipular as massas. O que não queremos: nem que toda esta carga de esperança dos jovens se perca na diminuição do movimento e nem que parta para a radicalização pura e simples. Por isso, a agenda ampla e de consenso aos poucos deve ceder para uma agenda com objetivos modestos, mas realizáveis. Mais, os jovens precisam vir mais qualificados para o debate público, com conhecimento de causa, quase experts, formados pelas organizações de base para que tenham continuidade em suas reivindicações e não se dispersem. Mas, ao fazer isso, não podem tentar “inventar a roda”, como pretendem agora: os demais movimentos sociais devem, sim, ser convocados, assim como os políticos, para que sejam identificados e não fiquem ocultos na multidão.
É de fato uma mudança no temperamento dos jovens. Da mesma forma que não adianta ao Estado assumir uma postura autoritária, não adianta aos jovens negar as instituições políticas. Ambas atitudes só reforçam o ódio à politica, apontado por Rancière. Ao contrário, cabe aos jovens a tarefa de refazer as instituições que abandonam agora, devem debater o que deve ser feito pelo Estado. “O reconhecimento mútuo precisa ser negociado”, diz Sennett. Os pais esperam que os jovens sejam capazes de fazer alguma coisa da própria vida, cuidarem-se de si próprios, ajudarem aos outros e serem capazes de criar condições para respeito mútuo, artigo em falta nos tempos que passam.
No fundo, no fundo, o movimento das ruas se quer transpolítico numa sociedade política. Ele quer o desaparecimento da política, este é seu modo de apaixonar a juventude, mas o transpolítico tem tantos defeitos como o político. A crise do político é substituída pela anomalia do transpolítico, lugar de aberração sem consequências, “daquilo que escapa à jurisdição da lei”, como diz o sociólogo e filósofo francês Jean Baudrillard. Não é exatamente isso que vemos nos movimentos de jovens, a infração a um sistema determinado por aquela parcela irracional da juventude? É uma minoria de jovens, é claro, mas ela é capaz de colocar em risco todo o movimento e por isso precisa ser rejeitada por todos jovens. Não se trata de os colocar no lugar do mal, não é a solução, até porque não se trata de opor um bem ou um mal, pois houve tentativas de produzir o bem que produziram o mal e vice-versa. Quer dizer, nada impede que, mesmo com as situações de violência que vemos e condenamos, haja resultados, mas é preciso evitar a histeria e a repetição constante e sem sentido.
Estes jovens têm passado por uma vigília extenuante nos últimos dias, é quase um certo tipo de insônia política, como a relatada pelo escritor e filósofo romeno Emil Cioran. Mas o ser humano precisa, um dia, repousar. É preciso apresentar as reivindicações e dar o tempo para o Estado responder e negociar, sem o qual não se poderá ir adiante. Eis uma consciência que precisa emergir no movimento.
*Doutor em Educação pela UFRGS
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