EFEITO COLATERAL
Moradores se unem contra os vândalos
A presença de baderneiros infiltrados nos últimos quatro protestos realizados em Porto Alegre, responsáveis por saques e depredações, está gerando um fenômeno novo: moradores e comerciantes, armados com tacos de beisebol, barras de ferro e facões, estão se organizando para proteger o patrimônio. Especialistas alertam para riscos que as autodefesas representam.
Da janela do segundo andar do mercadinho onde trabalha, Gustavo Vettorazzi, 19 anos, observava uma multidão de jovens pulando sobre o teto dos carros estacionados em frente ao prédio na Rua João Alfredo, na noite de segunda-feira. O que sentia era medo. Do outro lado da rua, a comissária de bordo Kamilla Maggioni, 25 anos, via de sua janela adolescentes participando da depredação, praticada por infiltrados na manifestação pacífica contra o preço da passagem de ônibus na cidade – e outras reivindicações – e que se alastrava pelo bairro Cidade Baixa, na Capital. Abalada com a cena, sentia vontade de chorar.
Ao longo da semana, em conversas informais pelas ruas, os moradores e comerciantes decidiram defender seu patrimônio por conta própria se houvesse outro surto de ataques. Na quinta-feira à noite, durante a onda de depredações que se seguiu ao ato de protesto na Praça da Matriz, no Centro, Vettorazzi não ficou espiando pela janela. Desceu à rua quando a horda se aproximava do bairro, após confirmar a informação no rádio. Próximo à esquina com o Largo Zumbi dos Palmares, encontrou dezenas de vizinhos munidos de pedaços de pau e barras de ferro. Uns sabiam da aproximação do bando pela TV, outros, pela internet. Juntou-se a eles.
Às 21h30min, aproximadamente, os defensores toparam com vândalos que subiam pela João Alfredo após fugirem das tropas da Brigada Militar que avançavam pela Avenida João Pessoa, também palco de depredações. Eram cerca de 50 mascarados.
– Falamos que mascarado não passava na nossa rua, e quatro deles descobriram o rosto. Um nos enfrentou. Houve um princípio de conflito. Tiramos a máscara dele, e eles seguiram em frente – descreveu Diego Leandro Machado da Silva, 34 anos, segurança e um dos organizadores da resistência dos moradores.
Apavorada, gestante foi cercada por grupo
A destruição foi evitada sem que ninguém se machucasse, e a vizinhança aplaudiu das janelas dos prédios. Ontem à tarde, a ação do grupo era o assunto nas conversas na rua. Parada na esquina com a Travessa do Carmo ao lado de dois vizinhos – o analista de suporte Fabian Gre, 58 anos, e a aposentada Erani Martins, 62 anos –, a advogada Karina Bernardi, 36 anos, lamentava que tudo acontecera por causa da falta de policiais para impedir os danos.
– A polícia não pode dar neles, né? Então! – desabafou a advogada.
A notícia se espalhou, e outros núcleos de habitantes da Cidade Baixa começaram a cogitar a formação de grupos de defesa próprios. Na locadora de vídeo de Edson Feldmann, 47 anos, um dos focos da resistência, o eletricista Frederico de Souza Lamachia, 53 anos, convocava os moradores da Avenida João Pessoa pelo Facebook para a reação em caso de mais vandalismo. Na quadra seguinte da João Alfredo, já haveria 40 pessoas dispostas a formar outro braço de resistência na rua.
Um fato marcante na onda de depredações de segunda-feira formatou a ideia de reação para Feldmann. Ele estava postado em frente à locadora fechada, para defendê-la sozinho se fosse preciso, quando uma grávida apareceu, apavorada, tentando chegar em casa ao mesmo tempo em que a turba se movia pelo bairro. Protegeu-a junto à loja enquanto os vândalos ameaçavam atacar o estabelecimento.
– Ela está grávida! – berrou Feldmann, para afastar o grupo da gestante.
Foram o pânico com a violência ante os olhos e a insegurança causada pela dificuldade da Brigada Militar que forjaram o grupo de resistência na João Alfredo, concordam participantes. Porém, mesmo com as palmas nas janelas, a fama de heróis adquirida na região, todos sabem que não deviam estar lá naquela noite, com paus e ferros nas mãos para defender automóveis, moradias e o comércio. Ao lado de Feldmann na tarde de ontem, sentado ao computador na locadora, o segurança Diego da Silva olhou para o chão e falou baixo, num tom que só ele ouvia:
– Quando eu estava lá, pensei: cara, o que estou fazendo? A que ponto se chegou?
*Colaboraram Itamar Melo e José Luís Costa
ANDRÉ MAGS*
Especialistas alertam para “retrocesso”
Os grupos que se organizam para repelir a ação de vândalos são vistos com receio por pesquisadores da violência e peritos em segurança. Além de considerarem essa mobilização um comportamento arriscado, especialistas entendem que ela pode representar “retrocesso civilizatório”.
Diretor do Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o sociólogo José Vicente Tavares dos Santos observa que, nas sociedades modernas, o poder de coerção é delegado pela população ao Estado. Se as pessoas decidem agir por conta própria, esse princípio é abalado – e pode redundar em uma guerra de todos contra todos, com aumento da insegurança.
– Se o cidadão resolve fazer justiça pelas próprias mãos, isso é a negação do E stado democrático de direito. O risco é uma destruição do Estado e da sociedade modernos e a volta a um direito de vingança pré-civilizatório. As pessoas devem exigir atitude do Estado – afirma.
O professor Juan Mario Fandino Marino, do núcleo de pesquisa em violência da UFRGS, também considera que a formação de grupos de defesa não é recomendável – inclusive porque o cidadão não tem treinamento e pode expor-se a grande risco se sair com porretes para a rua.
– Parece claro que a polícia ainda não ofereceu um volume suficiente de proteção que faça as pessoas se sentirem seguras. É um desdobramento natural a população tentar se proteger por conta própria. Não quero culpabilizar essas pessoas, mas é importante alertar que se trata de um comportamento muito perigoso e que não deveria acontecer. Violência não se responde com violência. Além do risco pessoal, pode enveredar para um conflito civil sério – sublinha.
Fandino também não culpa as polícias. Ele reconhece que a infiltração de vândalos em um movimento social coloca as forças de segurança diante de uma situação nova e difícil:
– Minha expectativa é de que a Brigada esteja aprimorando maneiras de enfrentar essa infiltração. A população precisa ter paciência e esperar.
Especialista em segurança estratégica, Gustavo Caleffi cita o caso de um prédio próximo à Praça da Matriz em que, durante o protesto de quinta-feira, moradores posicionaram-se armados no hall, prontos para agir caso vândalos:
– É a volta da lei de Talião: olho por olho, dente por dente. Corremos o risco de essas manifestações se tornarem um conflito entre os que querem preservar o patrimônio e os vândalos.
Brigada fará reuniões
A Brigada Militar pretende evitar que moradores e comerciantes do bairro Cidade Baixa, em Porto Alegre, voltem a se armar com paus e barras de ferro para enfrentar vândalos como ocorreu na noite de quinta-feira.
Por orientação da cúpula da corporação, o Comando de Policiamento da Capital (CPC) marcará encontros com representantes do bairro para tentar apaziguar os ânimos e definir uma estratégia de ação em conjunto. Conforme o chefe do Estado-maior da BM, coronel Alfeu Freitas, caso ocorram novos protestos, o bairro terá policiamento antes, durante e depois dos eventos.
– Queremos diminuir o medo. Este tipo de atitude pode resultar em morte – afirmou.
O oficial fez um apelo:
– Por favor, não se organizem desse jeito. A BM está preparada para reprimir os vândalos. A Cidade Baixa vem sendo castigada por arruaceiros desde a primeira das quatro manifestações realizadas na Capital, em 17 de junho. Na noite de quinta-feira, dezenas de PMs a pé ocupavam vias como Lima e Silva, Venâncio Aires e República. Conforme moradores, havia locais desguarnecidos no momento do arrastão.
– Possivelmente, os PMs estavam atuando em outro lugar, a Cidade Baixa sempre tem policiamento. Gostaria de ter um PM para vigiar cada vândalo, mas isso é impossível – explicou o chefe do Estado-maior da BM.
ENTREVISTA. “Eles viram que a gente estava armado”
Participante do grupo que impediu a ação de vândalos na Rua João Alfredo, o estudante de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Rafael Pereira Dias falou por telefone com Zero Hora sobre os momentos de tensão no encontro entre os dois grupos. Confira trechos da entrevista:
Zero Hora – Como foi o contato entre vocês e os vândalos?
Rafael Pereira Dias – Eles passavam por nós quando uns tentaram nos agredir. Mas eles viram que a gente estava armado com pedaços de pau e barras de ferro, viram que era ruim e recuaram. Mandamos tirarem as máscaras, que só passavam ali sem máscara.
ZH – Vocês conversaram com eles?
Dias – Sim. Dissemos que não era para quebrar nada, que nos protestos anteriores já tinham quebrado carros, saqueado lojas. Falamos para baixarem a cabeça ou tirarem as máscaras, senão iria fechar o pau. Nós estávamos indignados.
ZH – Faltou policiamento na rua?
Dias – Olha, era uma bandidagem ontem (quinta-feira) na Cidade Baixa... Se prendessem uns 50 iam ver que tinha muito bandido. Acho que a Brigada Militar podia estar fazendo esse serviço. O pessoal está se sentindo desprotegido, e aí acaba se mobilizando e indo para a rua.
ZH – Vocês pretendem voltar à rua se houver possibilidade de mais depredações?
Dias – Na segunda-feira, neste protesto que vai ter de novo, acho que o pessoal vai se mobilizar outra vez para tentar interceptar (os vândalos), já que dessa vez deu certo. O protesto pacífico a gente apoia, mas esse quebra-quebra não dá mais.
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