TESTE DAS RUAS
HUMBERTO TREZZI E JULIANA BUBLITZ
Se o Brasil dá exemplo de democracia com a explosão de indignados que marcham por um país melhor, o frenesi das massas dos últimos dias também serviu de anabolizante para grupos radicais que pregam o fim dos partidos políticos e testam a maturidade política da nação
Em São Paulo, militantes do PT e do Movimento Negro foram escorraçados a pauladas por bad boys enfurecidos que gritavam “sem partido, sem partido”. No Rio de Janeiro, sindicalistas da CUT tiveram as bandeiras quebradas e foram expulsos da passeata. Em Porto Alegre, as sedes do PT e do PMDB acabaram depredadas. A radicalização dos protestos que sacodem o país, mesclando atos de vandalismo e doses altas de intolerância, abre uma nova e premente discussão: afinal, para onde vai a democracia brasileira?
A resposta ainda está sendo escrita, mas os sinais que vêm das ruas preocupam cientistas políticos e autoridades, entre elas o governador gaúcho. Tarso Genro alerta para o risco de uma guinada perigosa:
– Um movimento sem direção pode se tornar anárquico. E um movimento anárquico pode ser cooptado pelo fascismo. A história mostra isso com Mussolini e Hitler.
A avaliação de Tarso já repercute nas redes sociais. E as ruas exibem sinais desse desgaste entre os sem e os com bandeiras. O Movimento Passe Livre anunciou a suspensão das passeatas, preocupado com a interferência crescente de correntes anárquicas ou direitistas. Intelectuais também entram no debate e reconhecem que o regime democrático passa, talvez, por seu maior teste no Brasil.
Diretor do Instituto de Pesquisas e Projetos Sociais (InPro), Benedito Tadeu Cesar diz que os cientistas sociais estão perplexos porque não previam a erupção da violência com tanta intensidade. Ele enfatiza que o brasileiro médio viu com bons olhos, no início, esse redespertar da cidadania. Só que a ausência de lideranças levou a todas bandeiras possíveis, algumas contraditórias entre si. A agressividade também recebe críticas.
– A baderna leva a um vácuo. E não existe vácuo em política. Alguém ocupará esse lugar que está sem organização e líderes. Sabemos que parte das depredações é feita por movimentos anárquicos, que negam tudo que está aí, na base do “não me representa”. Como disse Antônio Gramsci (comunista italiano), a crise acontece quando o velho já morreu e o novo ainda não nasceu... O problema é que negar tudo abre espaço para coisas como o fascismo. Esse, sim, com um projeto totalitário definido – analisa Benedito.
O cientista político Gustavo Grohmann, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), também acredita que a disseminação da intransigência, ainda que parta de uma minoria, pode terminar mal.
– Esses grupos radicais são amplamente hostis ao que está estabelecido. É todo o sistema que está sendo colocado em questão, e isso cria um ambiente, um caldo cultural, que pode, sim, dar lastro para um golpe – afirma Grohmann.
O novo espaço de poder aberto pela erupção das ruas, segundo o professor Joel Formiga, da Universidade de São Paulo (USP), será apropriado “por aqueles que estão mais organizados”. No Egito, destaca Formiga, foi exatamente isso o que aconteceu: a lacuna não foi ocupada por quem saiu às ruas para protestar, mas por uma ala religiosa conservadora e unida.
– Não digo que aqui será como no Egito, mas essa massa que está nas ruas não está organizada, e isso é um risco. Ainda assim, prefiro pensar que o saldo da mobilização será mais positivo do que negativo – pondera Formiga.
Para o cientista político Valeriano Costa, da Unicamp, é cedo para uma conclusão. Ele lembra que a turma da ultradireita e da extrema esquerda representa “menos de 1% do todo”. Mas alerta: o pior dos mundos seria o sistema político simplesmente ignorar os fatos e deixar a população sem respostas.
– O risco de fragilização da democracia ainda está distante, porque as instituições não foram abaladas, elas foram confrontadas. Mas esse risco existe, e esse é o lado B dessa história, que, espero, não se concretize.
O que surge da lógica difusa dos protestos
Há quem não enxergue na falta de protagonismo dos partidos – praticamente expulsos dos protestos dos últimos dias – algo necessariamente negativo ou um sinal de que a democracia esteja em xeque.
Especialista em movimentos e mídias sociais, o professor na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), Felipe de Oliveira, ressalta que, enquanto os movimentos sociais ortodoxos usavam a internet para divulgar suas causas, as atuais manifestações nasceram na web.
– Uma das características da rede é justamente sua universalidade, a multiplicidade de causas e bandeiras, e isso se reflete nas ruas – avalia Oliveira.
Oliveira vê pontos positivos nisso. Para ele, a Primavera Árabe não existiria sem as mídias sociais, sem contar que as passeatas em São Paulo pularam de 20 mil participantes para 70 mil em três dias – tudo por força da internet. Ele não considera fundamental que as manifestações tenham líderes ou sejam ligadas a partidos, mas ressalta: desde que mantenham princípios humanitários. Isso é possível, diz, se as lutas forem focadas, como a da redução da tarifa de transporte e dos gastos com a Copa.
O gaúcho Ivar Alberto Hartmann, professor do Centro de Justiça e Sociedade da Fundação Getulio Vargas Direito Rio, também vê mais pontos positivos do que negativos.
– Não podemos tentar compreender o que está acontecendo hoje com base em teorias e classificações de 20, 30 anos atrás. A internet mudou tudo – ressalta.
Hartmann é otimista e aposta que os grupos radicais que promovem o vandalismo perderão força e que, como resultado final, a democracia brasileira sairá fortalecida.
ENTREVISTA. “A intolerância é o pior que poderia acontecer”
Para o professor Fabiano Santos, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) , o rumo que as manifestações estão tomando no país é perigoso. Coordenador do Núcleo de Estudos sobre o Congresso, Santos vê nas agressões cometidas pela minoria radical o mesmo sentimento de intolerância que balizou a ascensão do nazifascismo. Confira trechos da entrevista.
Zero Hora – Qual é o impacto da radicalização que ocorre nos protestos para a democracia brasileira?
Fabiano Santos – Muito negativo. É claro que existe o lado positivo das manifestações pacíficas, da participação, mas isso sempre tem de se complementar com representação e com uma agenda consistente. E não está se vendo isso. Pelo contrário. Os militantes de partidos políticos estão sendo agredidos, e as instituições democráticas estão sendo depredadas e hostilizadas, incluindo os meios de comunicação. Instituições e partidos devem ser questionados e criticados. Mas quebrados? Isso é intolerável.
ZH – Pode existir democracia sem partidos e sem líderes políticos?
Santos – Não. A democracia pressupõe organizações para agregar interesses e negociar conflitos, e essas organizações são os partidos.
ZH – Como pode acabar essa hostilidade pelos partidos?
Santos – Essa opção pela intolerância pode se tornar o caldo de cultura para o autoritarismo e o totalitarismo, a violência política. É perigoso. A intolerância, traduzida por esse sentimento antipartidário, antivoto e anti-instituições, é o pior que poderia acontecer. Minha preocupação não é nem explicar as causas. O que me preocupa é o desdobramento político, que está em aberto. E existe uma conotação fascista clara, que está na origem dos movimentos nazifascistas e termina em partido único, aquele que supostamente é dono da verdade, moralmente superior. Isso é muito ruim para a democracia.
ZH– Mesmo que os grupos de vândalos sejam uma minoria?
Santos – São minoria, mas uma minoria que tem intensidade. E há uma grande massa que, em geral, é apática em relação à política.
ZH – Como se evita isso?
Santos – A violência tem de ser combatida pelo poder público de forma definitiva e rigorosa. O poder público não pode permitir a intolerância e a agressão física.
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